Nov. 27, 2017 06:34 UTC
  • Exclusivo: Os migrantes falam de

Sobreviventes de leilões de escravos na Líbia falam de "tortura insuportável" e "inferno vivo", uma vez que a filmagem escondida mostrando que os migrantes foram vendidos provocou indignação global na semana passada.

O Governo do Mali condenou no sábado "energicamente" a venda em leilão de emigrantes subsaarianos na Líbia e pediu ao governo do país norte-africano para buscar e julgar os autores.

Em comunicado, o Governo malinês manifestou sua "profunda preocupação e indignação" com as informações relacionadas ao leilão dos emigrantes subsaarianos na Líbia.

"O Governo malinês condena energicamente estas práticas desumanas que lembram uma página obscura e dolorosa da história da África", diz o comunicado.

Além disso, Mali pediu que a situação dos emigrantes subsaarianos na Líbia e em outros países seja objeto de discussões na União Africana, e manifestou seu compromisso de lutar "contra todo tipo de tráfico de seres humanos".

O escândalo veio à tona depois de um vídeo divulgado pela rede "CNN" que mostra como emigrantes subsaarianos são leiloados como escravos na Líbia, o que causou grande comoção na África e provocou a reação de vários dirigentes do continente.

Muitos são obrigados a pedir dinheiro às famílias para evitar a escravatura. Segundo a Organização Internacional para as Migrações, o deserto do Sara ultrapassou o Mediterrâneo como principal causa de morte.

Conseguem chegar a território europeu, no melhor dos casos; ou são capturados, levados para um centro de detenção e repatriados. Ou acaba morto por afogamento nas águas do Mediterrâneo - e a este trágico fim, se junta agora à desumanidade de terminar os dias como escravos em território líbio, vendidos em leilão pelo equivalente a 400 dólares (340 euros).

Um trabalho da CNN, divulgado ontem, revela que em várias cidades da Líbia se realizam vendas de migrantes pelos traficantes que eram suposto trazê-los até à Europa. Provenientes de países da África subsaariana são forçados a permanecerem em locais fechados, sem água ou alimentação digna desse nome até serem vendidos. Um destes migrantes, Victory, natural da Nigéria, disse à CNN ter "gasto todas as economias" na tentativa de chegar até à Europa e acabou por ser vendido como escravo, supostamente por não ter pagado o suficiente para a parte final da viagem. Victory, que aguarda num centro de detenção em Tripoli o repatriamento, ficou livre após a família pagar um resgate. Quando foi comprado valeu precisamente 400 dólares.

 

A investigação da CNN vem chamar a atenção para uma realidade que existe na Líbia desde o fim da ditadura de Muammar Kadhafi, em 2011. Realidade que ganhou maior dimensão desde que o país se tornou, em 2016, a principal plataforma para migrantes e refugiados tentarem chegar à Europa. E que a crise política, os confrontos entre fações e a desagregação do aparelho do Estado vieram facilitar.

Em abril último, um relatório da Organização Internacional para as Migrações (OIM) descrevia situações idênticas às de Victory, com "pessoas a serem vendidas em mercados a céu aberto". Uma reportagem publicada então pela revista Newsweek recolhia testemunhos - de homens e mulheres - de migrantes africanos e as situações de crueldade, violência e abuso a que tinham sido sujeitas estas pessoas pelos traficantes. E também pelos elementos da Guarda Marítima líbia e agentes dos centros de detenção deste país. Quanto a este último aspeto, um relatório do alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra “ad Al Hussein, divulgado ontem revela que “milhares de homens, mulheres e crianças emaciados, traumatizados, sem espaço para se mexerem fechados em hangares e sem qualquer acesso a necessidades básicas”“. Estão hoje 20 mil pessoas nos centros de detenção em Trípoli.

Vendido duas vezes

A reportagem da Newsweek recolhe o depoimento de um jovem adulto da Guiné que disse ter sido "vendido duas vezes". Na primeira, "fui vendido a um árabe, que me obrigou a trabalhar para ele e a telefonar à minha família a pedir dinheiro para pagar um resgate". Como isso não sucedeu, o primeiro árabe vendeu o guineense a "outro árabe", para o qual teve também de trabalhar, só ficando livre quando a família pagou o resgate.

A mesma reportagem refere que também as mulheres são vendidas em leilões de escravos e que o seu preço é superior ao dos homens. Além de forçadas a trabalho escravo, são vítimas de abusos sexuais.

Por seu lado, o relatório da OIM divulgado em abril revela que os traficantes, na fase inicial da viagem, durante a travessia do deserto do Sara, costumam negociar com grupos armados que raptam os migrantes para depois pedirem resgates, a serem pagos por transferência via Western Union ou Money Gram. Quando não são pagos os resgates, os migrantes são vendidos como escravos ou ficam sem comida.

Um outro relatório da OIM, da semana passada, indica que o maior número de mortes de migrantes sucede na travessia do Sara, estimando que seja agora o dobro do número de pessoas que já perderam a vida este ano na travessia do Mediterrâneo: 2750.

Dois migrantes  confirmaram ao New Arab que haviam sido traficados por bandidos da Líbia, que os contrabandearam secretamente em um mercado de escravos e exploraram seus sonhos de alcançar a Europa para uma vida melhor. "Eu sofri tortura insuportável e um inferno vivo na Líbia", disse Diaba, de 23 anos, a The New Arab. "Eu pensei em muitas vezes que minha vida acabada e que nunca mais voltaria ao meu país". Diaba e um grupo de outros migrantes tomaram uma rota terrestre em junho, viajando do Mali, através do vizinho Níger para a Líbia. "Atravessamos a fronteira do Mali para o Níger, e daí para a Líbia, sem ser parado em qualquer cruzamento da fronteira". Diaba descreveu a Líbia como um estado anárquico, onde alegou forças de lei e ordem estavam envolvidas no tráfico de seres humanos.

"No sul da Líbia, nos encontramos com homens que concordaram em nos levar para a cidade de Zuwarah na costa do Mediterrâneo (oeste de Trípoli), mas mais tarde percebemos que eram cúmplices com as gangues locais", disse ele.

"Transportaram-nos para uma cidade perto de Misrata (a leste de Trípoli), onde nos mantivemos por dias e tratados como animais". Diaba foi transferido de uma gangue para outra, cada um desperdiçando seu sonho de imigrar para a Europa, fazendo sua melhor ambição para escapar deles e voltar para casa. Ele passou cinco meses na Líbia, onde lutou com violência, espancamentos e falta de comida e água.

"Meu destino, juntamente com o de centenas de outros imigrantes de diferentes nacionalidades, era desconhecido", disse ele. "Nós fomos tratados da maneira mais horrível. Fomos transferidos entre gangues e transportados de um lugar para outro - como se fossemos bens". "Quando queixávamos, fomos espancados e ameaçados de armas". Diaba disse que finalmente escapou com a ajuda de três homens e se entregou às autoridades locais em um centro de imigração na Líbia. Ele retornou posteriormente ao Mali.

A NewArab também falou com um homem de 26 anos chamado Yvonne, que descreveu como as gangues não mostraram piedade para com os migrantes africanos. Yvonne disse que ele foi roubado de todas as suas posses e forçado a trabalhar em um campo e como guarda. Ele foi mantido na Líbia por oito meses antes de fugir.

"Nós fomos espancados, tratados horrivelmente e ameaçados de morte", disse ele ao The New Arab. "Essas gangues são implacáveis ​​e aproveitam as necessidades dos migrantes para controlar os pontos de contrabando através do mar". Yvonne compartilhou detalhes horríveis sobre o leilão de dezenas de migrantes africanos como escravos.

"Os homens africanos foram vendidos diante de meus próprios olhos por somas que variam de US $ 700 a US $ 900 por pessoa", disse ele.

A Líbia tem sido um importante centro de trânsito para migrantes que tentam chegar à Europa. Testemunhos recentes que emergem do país devastador da guerra revelam que o número de traficantes de seres humanos aumentou drasticamente nos últimos meses. A metragem do leilão de escravos exibida pela CNN na semana passada desencadeou um protesto global, trazendo à consciência pública uma situação anteriormente observada por ONGs e observadores de direitos humanos.

A ONU pediu que esses leilões sejam investigados como possíveis crimes contra a humanidade, e a questão serão incluídos na agenda de uma cúpula União Africana-UE em Abidjan de 29 a 30 de novembro.

 

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